O aumento dos conflitos em terras indígenas ianomâmis a partir do crescimento do garimpo ilegal nos últimos anos esteve entre as principais preocupações de senadores e especialistas que participaram de audiência pública nesta segunda-feira (25) sobre democracia e violação dos direitos dos povos indígenas. Durante o debate, promovido pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, os participantes afirmaram que o cenário de violência e devastação ambiental é característico da fragilização das medidas de preservação do meio ambiente e da ausência de uma política de proteção territorial, que incentivam a ocupação e a exploração ilegal dessas terras.
Paulo Paim (PT-RS), que foi um dos senadores que solicitaram a audiência, classificou a atual situação dos povos indígenas como gravíssima. Ele disse que a ideia de realizar o debate e também uma diligencia nessas terras surgiu após relatos de um representante do povo ianomâmi, Júnior Hekurari Yanomami, de que meninas indígenas estariam sendo violentadas por garimpeiros, o que teria levado a morte de duas delas, e que muitas outras estariam grávidas em decorrência desses abusos. Para Paim, esse tipo de crime tem ocorrido com frequência nos últimos anos, caracterizando o descaso e a omissão do atual governo federal, com a falta de políticas públicas de proteção aos indígenas e de combate ao desmatamento e à exploração ilegal dessas terras.
— Não são situações isoladas. É um cenário de horror que está se alastrando nas terras indígenas. Isso mostra todo o descaso do Estado brasileiro, dos governos, um profundo ataque aos direitos humanos. Isso é inaceitável — protestou Paim.
Ao confirmar essas ocorrências, Júnior Hekurari Yanomami pediu socorro e medidas urgentes. Ele relatou que líderes indígenas, mulheres e crianças vivem sob ameaças de grileiros para que as denúncias não sejam feitas. Também pediu que o governo cumpra seu papel constitucional de assegurar a proteção desses povos com a efetiva atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça, da Polícia Federal e até do Exército, entre outros órgãos.
— Os garimpeiros estão violentando mulheres, adolescentes e crianças em terra indígena ianomâmi. Já há adolescentes de 13 anos, 14 anos, grávidas dos garimpeiros. Já há filhos de garimpeiros em terra indígena ianomâmi, nascidos já, com um ano, de adolescentes de 15 anos, de 14 anos. Então, nós, povo ianomâmi, estamos vivendo só, estamos sozinhos dentro da floresta. Os garimpeiros estão nos ameaçando. Se as famílias denunciarem esses garimpeiros, eles dizem que vão matar tudo. Por isso, as lideranças da comunidade não têm como denunciar, porque estão reféns dos garimpeiros. Por isso, nós, representantes, estamos aqui buscando apoio, buscando ajuda — declarou ele.
Com quase 10 milhões de hectares, a terra ianomâmi se localiza entre os estados de Roraima e Amazonas, além de ocupar uma parte da Venezuela. Estima-se que cerca de 27 mil indígenas, incluindo grupos isolados, vivem em cerca de 360 aldeias.
A ausência do Estado e o enfraquecimento das competências dos órgãos fiscalizadores também foram destacadas pela Coordenadora do Programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da ONG Conectas Direitos Humanos, Julia Neiva.
— A gente tem visto que o que contribui para a violência contra os povos indígenas é o enfraquecimento dos órgãos ambientais e dos órgãos ligados à proteção dos povos e comunidades tradicionais. Lembro aqui que houve a retirada de autonomia desses órgãos, intervenção política em suas operações; houve redução orçamentária, redução do quadro de pessoal e da capacidade técnica dessas pessoas, desses órgãos; houve militarização da proteção ambiental e pressão e perseguição a servidores públicos.
Conforme dados colhidos pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2020 o Brasil teve 182 indígenas assassinados. E, em 19 estados 201 terras indígenas foram alvos de 263 de invasões e explorações ilegais de recursos naturais. Ainda de acordo com relatório do Cimi, quase 50 mil indígenas foram contaminados pela covid-19 e 900 morreram em consequência dessa doença. Além disso, o documento aponta que mais de três mil crianças indígenas morreram no país, nos últimos quatro anos.
Por outro lado, o senador Mecias de Jesus (Republicanos), representante do estado de Roraima, disse que a invasão desses territórios por grileiros, assim como as consequências das explorações ilegais, tem ocorrido independentemente de governos. Para ele, é preciso montar um plano estratégico para chegar a um “denominador comum” que possa inibir a exploração ilegal, mas também garantir a atividade legal de mineração na Amazônia.
— Ou se encontra uma forma de normatizar, de regulamentar, para não dar prejuízo à flora, à fauna, às comunidades indígenas, uma forma de fazer esse aproveitamento mineral na Região Amazônica, sobretudo nas terras indígenas, uma forma que compense, para você viver bem ali, sem prejudicar os costumes, sem prejudicar as causas mais importantes, a cultura do nosso povo indígena, ou vamos continuar, daqui a 30 anos, reclamando disso — argumentou o senador.
A senadora Leila Barros (PDT-DF) também defendeu medidas práticas e urgentes. Ela sugeriu a formação de um grupo de parlamentares que se comprometa a ir a essa região, em diligência para buscar entendimento sobre a questão.
— Eu acho que já passou do momento de fazermos uma comissão, de irmos visitar essas terras, de dialogarmos com os nossos povos indígenas e escutarmos o outro lado também. Mas isso tem que ser tratado com muita seriedade — ressaltou Leila.
Na avaliação de vários debatedores, este é o pior momento no que se refere à garantia, à promoção e à proteção dos direitos indígenas.
O secretário-adjunto do Cimi, Luis Ventura Fernández, lembrou que a Constituição Federal consagrou o direito originário dos povos indígenas a seus territórios, cabendo a eles o usufruto exclusivo dos bens naturais, bem como o reconhecimento de sua organização social, costumes, crenças e tradições. A demarcação de terras, salientou o secretário, deveria ter sido completada cinco anos depois da promulgação da Carta Magna, mas, segundo ele, nos três últimos anos o governo federal tem se negado a avançar nessa política — o que, para o Cimi, significa uma “declaração de descumprimento de uma obrigação constitucional”.
— A não demarcação de terras indígenas se concretiza num aumento da violência, num aumento da insegurança territorial, numa falta de políticas públicas, em povos indígenas morando nas beiras, morando nas margens da estradas com sua vida absoluta e totalmente comprometida. Por outro lado, há um aumento expressivo da invasão das terras indígenas. É o caso da terra indígena ianomâmi. Mais de 20 mil garimpeiros. Esta é a denúncia que as organizações indígenas estão fazendo há mais de quatro anos: a presença de mais de 20 mil garimpeiros sendo responsáveis por aumento de desmatamento, poluição de rios, morte e ameaças — denunciou Fernández.
Conforme dados coletados pelo Cimi, em 2020 havia 536 terras indígenas reivindicadas para as quais não havia nenhuma providência administrativa na Funai, além de cerca de 300 terras indígenas ainda em alguma fase do procedimento administrativo de demarcação dos territórios.
De acordo com esse relatório, em 2020 foram registrados 236 casos de invasão possessória de exploração ilegal dentro de territórios indígenas.
Segundo o procurador da República em Roraima, Alisson Marugal, o atual momento na terra ianomâmi chega a ser pior do que na década de 1980, quando mais de 40 mil garimpeiros invadiram o território e a demarcação não tinha sido homologada. Ele afirmou que o Ministério Público tem emitido alertas sobre o conflito desde o ano passado, mas que, por outro lado, os meios de fiscalização e penalização dos infratores têm sido fragilizados. Ele disse que o enfrentamento das ilegalidades encontra ainda mais resistência por contar com o apoio da população e de lideranças locais.
— Quase todas [as reservas de ouro do estado de Roraima] estão concentradas no território ianomâmi, o que demonstra muito bem o perigo que esse território corre sem uma efetiva política de proteção territorial. Sabemos que o garimpo hoje é uma estrutura industrial; não existe nada de rudimentar ou artesanal. Hoje há uma grande indústria do garimpo com seus financiadores, que são efetivamente quem ganha dinheiro nessa atividade. Há os donos de maquinários, os apoiadores logísticos, os pilotos de avião, as empresas de transporte aéreo, os receptadores de ouro nos escritórios confortáveis de São Paulo que compram o ouro de Roraima, e os garimpeiros. Há mais de 20 mil garimpeiros no território indígena, muitas vezes alguns deles em regime de trabalho escravo — disse Alisson Marugal.
O procurador afirmou que o combate efetivo a esse problema só será possível com uma grande operação interagências, dentro e fora de terra indígena, inclusive com a destruição de toda a estrutura logística desse esquema.
Também participaram da audiência Ernani Sousa Gomes, representante da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde; Neto Pitaguary, representante do Fórum de Presidentes do Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi); e Josiê Gonzalez, coordenadora do Núcleo Jurídico da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Eles reforçaram o compromisso dessas instituições em somar esforços para oferecer assistência aos povos da terra ianomâmi.
— A Sesai, em nível central, está atenta a todos esses impactos e problemas enfrentados pelo distrito especial ianomâmi. A Sesai instituiu um grupo de trabalho e elaborou um plano emergencial para apoiar o distrito ianomâmi. Nesse plano emergencial, nós temos como principais frentes o tratamento ou o combate à desnutrição, à mortalidade infantil, à malária, à tungíase e ao uso abusivo de álcool. Então a Sesai reafirma o seu compromisso com a transparência e com o contínuo fortalecimento das ações de saúde destinadas aos povos indígenas, especialmente aos povos indígenas ianomâmis atendidos pelo distrito ianomâmi — declarou Ernesto Sousa Gomes.