Até o fim de 2020, mais de 14 milhões de hectares de terras públicas estavam registrados ilegalmente como propriedade particular no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo que 3,4 milhões de hectares já haviam sido desmatados. Os dados constam do relatório de avaliação da atual política pública de regularização ambiental e os impactos gerados pela ocupação ilegal de áreas públicas na Amazônia Legal. De autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), o texto foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente (CMA) nesta terça-feira (1º) e será encaminhado à Mesa Diretora para divulgação.
O relatório, que teve origem em requerimento apresentado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), destaca ainda que o governo de Jair Bolsonaro promoveu uma ampla desorganização dos órgãos públicos ligados à defesa ambiental e à regularização fundiária, com destaque para a situação do Incra, a partir de cortes orçamentários e falhas na gestão do capital humano formado por seus servidores, além de ter desmobilizado ações ambientais que já estavam em processo de aperfeiçoamento. O documento, que apresenta algumas sugestões para o aprimoramento da política de regularização fundiária, também registra que o Brasil lidera o ranking entre os países que mais promovem desmatamentos ilegais desde a década de 1990.
O relatório ressalta que o CAR tem sido utilizado como um caminho certo para legitimar a grilagem em terras públicas em todo país, sobretudo na Amazônia, apesar de constituir um importante instrumento de monitoramento e regularização ambiental dos imóveis rurais.
“Por isso, a ligação entre a grilagem marcada pelo CAR e a retirada da floresta como meio de comprovar a posse sobre a terra, sem nenhum interesse imediato na produção ou no aproveitamento adequado da área, é um dos principais impulsionadores do desmatamento. Cerca de 66% dos casos ocorreram dentro do perímetro declarado ilegalmente como particular, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia”, destaca o documento lido pelo presidente da CMA, senador Jaques Wagner (PT-BA).
Ao longo dos últimos anos, de acordo com o relatório da CMA, denúncias apontam que o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural tem recebido registros de propriedades ilegais em terras públicas destinadas e não destinadas. Trata-se de registros sobrepostos a Florestas Públicas Não-Destinadas (FPND), Terras Indígenas (TI) e Unidades de Conservação (UC) que não poderiam ser aceitos no sistema como propriedade privada ou mesmo posse legítima e, portanto, com direito de registro no CAR.
— Como o CAR é autodeclaratório, grileiros cadastram no sistema supostos imóveis rurais nas florestas públicas não destinadas, para simular um direito sobre a terra que eles não possuem, conforme a legislação atual. E o aumento da grilagem de terras é apenas uma das muitas consequências nefastas desse processo, que envolve corrupção, formação de quadrilha, trabalho escravo, violência contra povos indígenas, roubo de madeira e mineração ilegal — disse Wagner ao ler o relatório.
De acordo com o Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram identificados, a partir de dados do próprio Serviço Florestal Brasileiro (SFB), 2.789 cadastros sobrepostos a terras indígenas, somando mais de 380,5 mil hectares.
— É fundamental compreender como os filtros do CAR estão sendo operados, bem como quais ações devem ser tomadas para impedir cadastros em terras públicas não destinadas, comunicando à população, e às demais nações, como os cadastros realizados de maneira irregular serão suspensos ou regularizados — afirmou Wagner.
Em 2004, foi lançado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, cujos resultados foram positivos devido à articulação de três eixos temáticos: ordenamento fundiário e territorial; monitoramento e controle ambiental; e fomento às atividades produtivas sustentáveis.
Entre 2005 e 2014, deixaram de ser desmatados mais de 11 milhões de hectares ou 22 bilhões de árvores adultas, sendo considerada a maior contribuição de um único país para toda estratégia de mitigação de emissões de gases de efeito estufa no planeta. Houve uma redução na taxa anual de desmatamento de 82% em função da implantação efetiva do plano de ação.
Esse cenário mudou desde 2015, e uma das causas para a reversão da trajetória da década anterior foi o aumento progressivo nas taxas de desmatamento no bioma amazônico, particularmente em terras públicas, como resultado direto da grilagem para fins de especulação fundiária, ponto focal da atenção do relatório da CMA.
Durante a leitura do relatório, Wagner lembrou que o Brasil assumiu, perante mais de 100 países na Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP26), realizada em 2021 em Glasgow, na Escócia, o compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2028 e reduzir em 50% as emissões de gases de efeito estufa até 2030, por meio de ações coletivas para deter e reverter a perda florestal e a degradação do solo.
— Entretanto, existe um movimento que pretende desconstruir a função precípua dos programas de regularização fundiária, os quais devem ser utilizados para reconhecer situações de fato consolidadas há muitos anos. Em lugar de empreender e aplicar a legislação em vigor, o governo federal e sua base parlamentar na Câmara e no Senado insistem em flexibilizá-la para facilitar a regularização de médias e grandes propriedades, quando deveria implementar a legislação vigente para viabilizar a entrega de títulos de terra para as ocupações antigas de pequenos posseiros, que correspondem a mais de 90% dos beneficiários na fila da regularização fundiária — disse o presidente da CMA.
De acordo com o relatório da CMA, um dos maiores exemplos de paralisia no Incra foi o abandono da política fundiária de territórios quilombolas.
— Lamentavelmente, percebemos fortes indicações de preconceito institucional, pois, enquanto o governo investe e comemora titulação precária de lotes de assentamentos, a regularização de territórios quilombolas sobrevive à míngua de recursos orçamentários e humanos. Portanto, corrigir esse rumo não é apenas questão de gestão, mas, principalmente, de resgate da dignidade e dos direitos fundamentais da população quilombola. A política de regularização fundiária precisa ser retomada e impulsionada no Brasil, mas sem que para isso estimule práticas predatórias, como a ocupação de áreas com vegetação nativa e desmatamento ilegal — destacou Wagner.
O relatório recomenda que o Congresso Nacional, além de legislar, fiscalize o Executivo na implementação da legislação vigente e avalie a efetividade da legislação, antes mesmo de promover sua alteração, propondo medidas corretivas e de aprimoramento da política. De acordo com o documento, é necessária e urgente a análise da regularização fundiária como política pública, avaliando também sua interface com o controle e regularização ambiental e com a prevenção e redução de desmatamentos ilegais na Amazônia.
— Terras públicas devem ser destinadas para finalidades de interesse público, como reforma agrária, criação e implementação de unidades de conservação da natureza, reconhecimento de terras indígenas e de quilombolas, concessão florestal, estratégias de segurança nacional, ou até mesmo para pequenos produtores rurais em ocupações antigas e em fase de consolidação, em áreas apropriadas para o desenvolvimento agropecuário — afirmou Jaques Wagner.
No início da reunião remota da CMA, Jaques Wagner comentou o resultado das eleições de domingo (30) e disse estar “esperançoso” em relação ao governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, no que diz respeito à questão ambiental.
— Na condição de presidente da CMA, sinto-me esperançoso com o próximo governo. O compromisso do presidente eleito foi claro na trajetória dessa campanha. Não tenho dúvida de que teremos ambiente de diálogo mais salutar entre as duas Casas do Congresso. Logo voltaremos à tranquilidade total e me congratulo com todos os colegas, independentemente de posição.
Na festa da democracia, os eleitores depositaram esperança no próximo governo. Foi uma disputa apertada, o que mostra que o próximo presidente terá que ter capacidade de diálogo muito grande e, para isso, pretendo, na condição de senador, contribuir para que tudo isso possa acontecer, e que o Brasil volte a estar na constelação internacional, particularmente na questão do meio ambiente e na questão social – concluiu o presidente da CMA.