O corte de recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), determinada pelo Ministério da Saúde, é um grande retrocesso na política de atendimento a pessoas com transtornos mentais, que se pauta na luta contra os manicômios. Assim entenderam os debatedores ouvidos pela Comissão de Direitos Humanos (CDH), em audiência nesta segunda-feira (18). Eles questionaram a legalidade da portaria e também se manifestaram contra o edital do Ministério da Cidadania, que entendem incentivar hospitais psiquiátricos. Tramitam na Câmara e no Senado projetos de decreto legislativo para sustar as medidas.
A realização da audiência atendeu a requerimento do senador Humberto Costa (PT-PE), presidente do colegiado. Ele lembrou que a reforma da atenção à saúde mental no Brasil foi resultado de uma longa luta, em vários governos, com o objetivo de respeitar os direitos das pessoas. Ele mencionou os grandes avanços recentes na psicoterapia, que tornaram possível evitar a exclusão e o afastamento de pessoas da sociedade.
— Ao que consta, as mudanças que são pretendidas [pelo governo] almejam, em última instância, que nós retornemos àquele modelo manicomial, àquele modelo de exclusão social a que as pessoas portadoras de transtorno mental eram submetidas — argumentou.
O defensor público da União, Thales Treiger, citou a morte de Damião Ximenes — torturado e morto numa clínica psiquátrica conveniada ao SUS no Ceará —, que gerou a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, para ressaltar que a sociedade fica “obstruída” a respeito da situação dentro dos muros do manicômio, e associou a política do governo federal à falta de controle com relação à tortura.
— De um lado, há um escopo de aumentar a institucionalização, com o aumento de verbas para se criar uma estrutura, novamente, voltada para o manicômio, para a lógica manicomial e, do outro lado, há uma diminuição na assistência dessas pessoas que ficam muito tempo institucionalizadas. Fora isso, há uma mitigação de mecanismos tendentes a erradicar a tortura. A gente tem aí um caldo pronto para um retrocesso — afirmou.
Os cortes na Raps e o edital do Ministério da Cidadania são medidas que ofendem leis nacionais, tratados internacionais e diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho. Ele ressaltou que os atos do governo se inserem numa política de desmonte de uma política de Estado, provocando regressividade de direitos.
— Nós estamos voltando a financiar locais de tortura, locais de maus tratos, locais de isolamento e exclusão social — lamentou, ao cobrar do Congresso a sustação da portaria do Ministério da Saúde.
Haroldo Caetano, promotor de justiça de Goiás, contrastou a longa trajetória antimanicomial com o “retrocesso abissal” verificado hoje, e acusou o Ministério da Cidadania de apropriar-se de questões que não são suas.
— E agora se vê aí esse rearranjo, no âmbito das políticas do Ministério da Cidadania, para que hospitais psiquiátricos sejam financiados. Ora, esse tempo já passou, e nós tivemos muita dificuldade, muita luta, muita gente morrendo em manicômios pelo Brasil — disse.
Representando o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, Dayana Rosa, mostrou que a desconfiguração da Raps — verificada em várias ações desde 2017 — estimula o aumento da demanda por internação psiquiátrica e, dessa forma, o Poder Executivo “tem criado seus próprios problemas”. Ela alertou que, em 2018, inspeção do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura chamou atenção para a realidade precária das unidades de internação.
— Mais da metade não tinham nem permissão sanitária para funcionamento; 42% tinham alimentação inapropriada; 77% faziam contenção física injustificada e recorrente e, além disso, também não tinham livre acesso à comunicação com familiares — declarou.
Dayana Rosa também sublinhou a existência de um “apagão de dados” sobre o estado da saúde mental e dos serviços hospitalares psiquiátricos no Brasil, o que dificulta a implantação de políticas públicas eficientes.
Fernanda Rodrigues da Guia, integrante da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde, destacou que hospital psiquiátrico “não é lugar para tratamento” e disse que as mudanças na política de saúde mental têm sido feitas sem diálogo com a sociedade e sem critérios técnicos.
— O que acontece, por exemplo, nos hospitais psiquiátricos? É muito comum ver que houve uma prescrição medicamentosa e que nunca mais ela foi analisada. A pessoa fica para sempre tomando os mesmos medicamentos, sem nenhuma análise. Então, quando se faz uso de medicamentos, também é para fazer de forma responsável. E também é sempre importante a política de não induzir a medicalização indiscriminada de todas as situações que chegam — disse, classificando a portaria do Ministério da Saúde como “estrago sem precedentes”.
A deputada Erika Kokay (PT-DF) também cobrou dados sobre a saúde mental no país e criticou o direcionamento do orçamento para estruturas manicomiais; a senadora Zenaide Maia (PROS-RN) disse que o governo acha que a política pública de saúde mental “é de ele e que pode mudar na hora em que quer”; e o senador Flávio Arns (Podemos-PR) citou a amplitude do problema de saúde mental no Brasil e opinou que a Raps deve ser melhorada e aprimorada.
Na abertura da audiência, o senador Humberto Costa anunciou que apresentará requerimento de acesso às gravações de reuniões do Superior Tribunal Militar (STM), realizadas no tempo do regime militar, que foram objeto de recente estudo acadêmico. Segundo reportagem citada pelo senador, as gravações dão conta de que os membros do STM tinham conhecimento da prática frequente de torturas contra presos políticos.
— Não é pouco importante a nossa população ter conhecimento e confirmação desses fatos, especialmente no momento em que temos um governo, em especial o presidente da República e seus filhos, que debocham de pessoas que foram vítimas de tortura — resumiu.
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