O caso da doméstica Madalena Silva, 62 anos, recém-resgatada na Bahia após 54 anos de trabalho análogo ao de escravo, exemplifica a não rara relação que se estabelece entre o Dia do Trabalhador (1º de maio), o dia da Abolição da Escravatura (13 de maio) e o Dia do Trabalhador Rural (25 de maio), debatidos no Plenário do Senado em sessão especial, nesta segunda-feira (2). Para senadores e debatedores, o desrespeito aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos reflete problemáticas que precisam ser de imediato enfrentadas e exterminadas.
Emocionado, o senador Paulo Paim (PT-RS), primeiro signatário da sessão especial, disse que as três datas se unem em “conexo triângulo de visões”. Segundo o parlamentar, o trabalhador e a trabalhadora não têm tido motivos para festejar.
— Tivemos em recente passado, aqui no Brasil, uma reforma trabalhista. Muitas ilusões foram vendidas. (...) A atual crise atingiu por demais a classe trabalhadora: perda de renda, menos dinheiro no bolso, inflação, aumento do custo de vida, "uberização", trabalho escravo, acidentes e doenças no trabalho — afirmou Paim, ao destacar que há hoje 20 milhões de brasileiros desempregados, desalentados ou com força de trabalho subutilizada.
Paim disse ainda ser inaceitável a desigualdade entre salários do homem e da mulher, que chega a uma diferença de 50%. No caso do salário da mulher negra em relação ao do homem branco, a diferença pode chegar a 70%.
Nos últimos dois anos, o Senado aprovou dez proposições referentes ao combate ao racismo, entre elas o PL 5.231/2020, que torna crime a prática de atos por agentes públicos e profissionais de segurança privada com base em preconceito, e o PL 4.373/2020, que tipifica a injúria racial como crime de racismo, inclusive com aumento de pena. O senador questionou por que esses dez projetos de combate ao racismo ainda não foram deliberados pela Câmara.
— Há 134 anos o povo negro era "libertado". Sofre até hoje uma abolição não concluída. Onde estão os direitos e as garantias de cidadania, saúde, educação, emprego, renda, segurança, moradia? Entre os 10% mais pobres da população brasileira, negros e pardos representam 78%. O racismo é estrutural na sociedade brasileira. Temos que enfrentar essa situação e combatê-la, nós, negros e negras, brancos e brancas.
Por fim, Paim destacou as dificuldades vividas pelo trabalhador rural. Segundo o senador, 70% da comida que vai para a mesa dos brasileiros é produzida pela agricultura familiar.
— Há que se destacar que são frequentes os relatos da fiscalização de que deparam com agressões físicas, cárcere privado, cerceamento da liberdade de locomoção e exposição ao risco de vida e de saúde.
Assim como Paim, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN) criticou a reforma trabalhista aprovada anos atrás, além da tentativa de minimizar os direitos previdenciários dos trabalhadores.
— A reforma trabalhista foi uma forma de legalizar contratar seres humanos como se fossem trator ou retroescavadeira. O que vivemos hoje é assustador.
A inspeção das condições de trabalho precisa ser pauta de todas as lideranças, segundo o subsecretário de Inspeção do Trabalho da Secretaria de Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência, Rômulo Machado e Silva.
Com atuação pela repressão e na orientação, em 2021 foram promovidas 443 operações de inspeção trabalhista, com parceria da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público e Defensoria Pública. Desse total, em 196 locais foram identificados casos de trabalho análogo ao de escravo. Outra linha de atuação age no combate ao trabalho infantil e na inclusão de jovens aprendizes em programas.
— A inspeção do trabalho jamais vai abrir mão do seu poder de polícia. E nós seguiremos fiscalizando, mas é fundamental que nós tenhamos a capacidade de criar o tratamento de acolhimento para esse trabalhador após ele ser resgatado. Nós precisamos ofertar para esse trabalhador capacitação, ofertar meios para que ele seja reinserido num ambiente de trabalho digno e decente. E também precisamos conscientizar trabalhadores, empregadores, suas organizações e toda a sociedade a respeito do que é considerado trabalho análogo ao de escravo em nosso país.
Supervisora do escritório regional do Distrito Federal do Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos (Dieese), Mariel Angeli Lopes afirmou que durante a pandemia houve uma piora significativa das condições de trabalho, e a população negra foi a mais atingida.
— Temos uma renda média do trabalho muito baixa, que caiu durante a pandemia. Agora, no final de 2021, a gente tinha uma renda média de por volta de R$ 2.370, sendo que no fim de 2019 (quando a gente não tinha uma situação boa no mercado de trabalho, a gente não estava passando por um crescimento muito significativo na economia), a renda média do trabalhador era por volta de R$ 2.500. Então a gente teve uma perda muito significativa nesses últimos dois anos.
Além disso, mais da metade dos trabalhadores ganham até R$ 1,5 mil. Para a supervisora, os futuros projetos de lei precisam ter em considerarão essa realidade de queda na renda do trabalhador, com imensa dificuldade diante da inflação, já que, em 2021, só 15% dos reajustes alcançaram ganho real.
— Os trabalhadores estão fazendo menos refeições. Mais da metade dos brasileiros passam por uma situação de insegurança alimentar. Por isso, se não resolvermos os baixos salários no Brasil, não vamos sair dessa situação.
A concentração da riqueza e a situação de devastação de políticas públicas no mundo de trabalho colaboram para um quadro preocupante que atinge especialmente as mulheres, principalmente as mulheres negras, afirmou a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Magda Biavaschi.
— Vivemos um Brasil de raízes resilientes, patriarcais, escravocratas. Estamos vivendo um regresso do capitalismo primitivo. (...) As desigualdades, quando não superadas, sequestram a democracia.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas de Material Elétrico de Santa Rita do Sapucaí (MG), Maria Rosângela Lopes afirmou que o Dia do Trabalhador deve ser sobretudo um dia de reflexão. Para a sindicalista, é preciso construir soluções, olhando em especial para as mazelas causadas pelos séculos de escravização, com forte combate ao trabalho análogo ao de escravo.
— Sabemos que a reforma trabalhista não deu certo na sua integralidade. Pelo contrário, gerou insegurança. (...) É preciso ações em três eixos: prevenção, assistência às vítimas e repressão. Os movimentos sociais, negros e dos trabalhadores resistem, e resistiremos.
A coordenadora do Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnias (Akanni) e suplente do senador Paim, Reginete Souza Bispo, enfatizou que não se conhece a real dimensão da exploração a que tantas pessoas são submetidas no país.
— A abolição da escravatura são dois parágrafos [em lei], sem nenhuma política de proteção a essa população. Deixou desprotegidos homens, mulheres e crianças, e isso segue até hoje. Como uma pessoa como a dona Madalena passou por tudo isso em pleno século 21? Essa situação não é análoga à de escravidão; é a escravidão. (...) Precisamos alterar essas estatísticas, em que 47% dos trabalhadores negros vivem sem proteção, na informalidade.
O procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes também criticou ainda ser preciso, após 134 anos do fim da escravização, discutir o trabalho análogo ao de escravo.
— Na verdade, essas pessoas são escravos contemporâneos. Como temos essas mazelas, é importante que tenhamos ações protetivas, e não "desprotetivas", como foi a reforma trabalhista.
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