Nesta quarta-feira (25), quando o Código Florestal completa dez anos de vigência, questionamentos quanto a sua implementação e seu alcance miram o descumprimento da legislação. Após recorrentes denúncias feitas em audiências públicas quanto às fraudes no Cadastro Ambiental Rural (CAR) — registro eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais —, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) promoveu debate sobre o tema.
Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) apontam que, somente na Amazônia, dos 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, 18,6 milhões de hectares possuem CARs ilegais.
— Em atenção a esta data, portanto, propusemos a audiência pública de hoje para tratar de um importante instrumento dessa lei: o CAR. Este é um instrumento moderno, que possibilita um novo grau de transparência quanto às ocupações de terras em todo território nacional. Entretanto, é preciso, como todo instrumento sob responsabilidade do Poder Público, estar sujeito a aprimoramentos para que possa, de fato, cumprir sua função — disse o presidente da CMA, senador Jaques Wagner (PT-BA).
O senador destacou que existem registros sobrepostos a unidades de conservação, terras indígenas e terras públicas não destinadas, tudo “patrimônio da população brasileira”.
— É preciso debater estratégias de aprimoramento deste sistema como forma de garantir que os filtros do CAR não permitam ou validem registros sobre estas áreas.
Leila Barros (PDT-DF) reforçou que a Casa tem de se debruçar diante desse cenário, que classificou como um “escândalo”. Para a senadora, é preciso verificar e punir os que estão fazendo vistas grossas à grilagem no Brasil.
O senador Paulo Rocha (PT-PA) disse que “a audiência se dá neste momento em que o governo brasileiro está cedendo o mapeamento das nossas riquezas para os bilionários internacionais”, em alusão a recente visita do bilionário Elon Musk à Amazônia.
Para o pesquisador do Ipam, Paulo Moutinho, o desmatamento gerado a partir das fraudes pelo CAR não somente traz danos ambientais, econômicos e sociais, mas representam um real problema para a segurança nacional.
— Nós temos uma bomba-relógio de desmatamento futuro armada pela proliferação de CARs, na Amazônia, especificamente, em terra pública. Há uma explosão de desmatamento de 2019 a 2021, especialmente nas florestas públicas não destinadas federais. (...) Estão validando e usando o CAR como instrumento fundiário para levantar recursos — nós temos vários relatos —, para que, então, façam a invasão, o desmatamento e a ocupação ilegal dessas terras públicas, que são preciosas para manter o regime de chuvas no país — afirmou Moutinho.
Pelo menos 50% do desmatamento na Amazônia ocorre em terras públicas, sendo que 30%, em florestas públicas não destinadas, segundo o pesquisador do Ipam. Dos 3,2 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas desmatados na Amazônia até 2020, 66% eram áreas com CARs.
Esses CARs são, em maioria, referentes a grandes áreas: 44% têm mais de 15 módulos fiscais; 30%, de 4 a 14 módulos fiscais e somente 24% estão abaixo de 4 módulos fiscais.
— Praticamente 78% viram pastagem, e essas passagens ficam ativas, produzindo carne, durante alguns anos; entre 20% e 25% são abandonados depois da ocupação e depois do grilo, ou seja, existe um mercado de carne que mantém a ocupação dessas áreas, o que permite mais à frente legitimar essas áreas invadidas caso passe algum mecanismo ou até alguns projetos de lei, inclusive que estão no Senado, para legalizar essas áreas — disse o pesquisador.
A sobreposição de CARs em terras indígenas ocorre em 24 estados brasileiros. Relatório do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) apontou que em 624 terras indígenas, com 118 milhões de hectares, havia 2.789 CARs sobrepostos a essas áreas, segundo a professora e ex-conselheira CNJ Maria Tereza Uille Gomes.
— O CAR, em relação à gestão, é um cadastro de altíssima relevância do conteúdo dos dados. Eu diria até que o coração do Código Florestal está no CAR, porque é por ali que eu vejo as áreas de APP, as áreas de reserva. Mas ele tem um problema seríssimo: ele é autodeclaratório, e não deveria ser autodeclaratório, deveria ser constitutivo — expôs Maria Tereza.
Outro problema, segundo a professora, é a inexistência de vínculo entre o CAR do Poder Executivo e registros públicos da Lei 6.015, de 1973, que são objeto de regulação pelo Poder Judiciário.
— Acho que o maior avanço que poderíamos ter nesses dez anos de Código Florestal seria tornar obrigatória a averbação do CAR na matrícula do registro imobiliário e, digo mais, sem custo e sem ônus.
Vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), João Paulo Capobianco apontou que existem 6,5 milhões de CARs, referentes a 612,5 milhões de hectares de área cadastrada, dos quais 52% já solicitaram adesão ao programa de regularização ambiental.
— O problema é que somente 28.631 imóveis foram analisados pelos órgãos públicos, nos últimos 10 anos, ou seja, o que representa 0,43%. Temos um sistema que tem fé pública, mas que não é adequadamente verificado pelo poder público, que acolhe esses cadastros, mas não faz a verificação — afirmou Capobianco.
Segundo o vice-presidente do IDS, compete ao Serviço Florestal Brasileiro gerenciar e manter atualizado o cadastro de florestas públicas.
— Estamos falando de uma situação de que o SFB permite que propriedades rurais incidentes sobre áreas públicas tenham o cadastro ativo. (...) Ocorre, de forma inequívoca, uma claríssima situação de improbidade administrativa. Essa omissão do Ministério da Agricultura e do SBF implicam claramente lesão ao patrimônio público.
A diretora de Regularização Ambiental do SFB, Jaine Ariély Cubas Davet, contestou que a competência da análise das informações seja do Serviço Florestal.
— A competência de aprovar a análise é das unidades federativas — afirmou Jaine.
O SFB possui atualmente filtros automáticos que apontam quando há sobreposições, segundo a diretora, e já há uma trava para barrar a sobreposição sobre terras indígenas.
Para o coordenador de Repressão a Crimes Ambientais de Patrimônio Cultural da Polícia Federal, Nilson Vieira dos Santos, há problemas a serem sanados, mas isso não quer dizer que não deva existir o CAR.
— Basta agir de forma transparente e proativa para saná-los.
Maior transparência também foi requerida pelo perito criminal da Polícia Federal Herbert Dittmar
— O CAR não representa um problema, mas sim a forma como está sendo utilizado, ou seja, como ferramenta de grilagem. Hoje, apenas o recibo de inscrição do CAR é documento suficiente para solicitar crédito rural. Se o CAR é uma autodeclaração de posse, não pode ser utilizado como documento fundiário.
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