A Câmara dos Deputados finalizou, na madrugada de quarta-feira (17), a votação do novo marco regulatório do setor de gás natural. A proposta busca expandir a infraestrutura e aumentar a concorrência no setor, de forma a reduzir o preço do produto para os consumidores, além de estimular o aproveitamento racional do petróleo e do gás e garantir segurança jurídica para os investidores do setor. O texto seguiu para sanção da Presidência da República.
De iniciativa do ex-deputado Antonio Carlos Mendes Thame, o Projeto de Lei (PL) 4.476/2020 vai substituir a legislação atual sobre o tema (Lei 11.909, de 2009), e foi aprovado pelos senadores em dezembro de 2020. O relator no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), apesar de avaliar que a nova legislação “contribuirá significativamente para destravar e dinamizar o setor e para o desenvolvimento do país” sugeriu aprimoramentos em seu relatório. Por isso, o texto precisou de nova apreciação pela Câmara.
Mas, nesse retorno, os deputados rejeitaram todas as emendas apresentadas pelos senadores, resgatando o texto deles. Na visão do relator na Câmara, deputado Laércio Oliveira (PP-SE), as emendas promoviam “mudanças nocivas ao texto” e poderiam “colocar em risco o acordo alcançado a duras penas com a indústria do gás natural”.
A senadora Zenaide Maia (Pros-RN), autora de uma das 20 emendas sugeridas no Senado, se mostrou desesperançosa com os objetivos da nova lei que, em sua avaliação, prejudicam a Petrobras e o Brasil.
— A Câmara decidiu não acatar nenhuma modificação aprovada no Senado, o que sempre causa frustração. Apresentei emenda, mas não foi acatada [por Braga], sobre a questão da desverticalização no transporte, porque entendo que o texto, do jeito que estava, tirava o protagonismo da Petrobras. Mas a intenção do governo federal é essa mesmo: o projeto da Lei do Gás nasceu justamente na esteira da privatização dos nossos gasodutos. Obras caras que custaram muito investimento público e que estão sendo oferecidas de bandeja para a iniciativa privada — avaliou Zenaide, para a Agência Senado.
As emendas dos senadores previam, entre outros pontos, o acesso do biometano à rede de gasodutos e a possibilidade de a atividade de transporte de gás ser exercida por meio de parceria público privada (PPP).
O texto redigido na Câmara trata de transporte, tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. A proposta define que a oferta de gás não é prestação de serviço público, não sendo obrigatório, portanto, o uso do regime de concessão, como ocorre atualmente. Assim, o projeto determina que o transporte de gás será submetido ao regime de autorização. Caberá à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizar consulta pública para emitir a autorização.
Também para a construção e a ampliação de gasodutos e instalações de transporte, o texto prevê o sistema de autorização pela ANP, por meio de processo seletivo público. A agência pode fazê-lo a qualquer momento, sempre que houver um novo interessado. Mendes Thame, autor da proposta, argumenta que a mudança no regime tornará o processo mais simples que as atuais concessões (com leilões). Restrições à formação de sociedades entre as companhias que atuam no setor impedirão que uma empresa atue em várias etapas da produção, evitando a formação de monopólios que distorçam o mercado de gás natural.
As autorizações serão por tempo indefinido e só poderão ser revogadas se a empresa pedir o cancelamento, falir, descumprir gravemente as obrigações contratuais ou interferir ou sofrer interferência de outras companhias da indústria do gás; ou se o gasoduto for desativado.
A agência deverá regular o transporte, estabelecendo os critérios para classificação das instalações como integrantes do sistema; a formação de áreas de mercado de capacidade (determinada área do sistema nacional de transporte de gás, como um estado, por exemplo); os critérios para criação e atuação dos gestores dessas áreas; e a padronização dos serviços de transporte conjunto pelas empresas que atuem numa mesma área de mercado de capacidade.
O texto também determina que qualquer participante do mercado organizado (espaço físico ou virtual de negociação e registro de operações) seja autorizado como administrador do transporte pela ANP, com a qual deverá firmar acordo de cooperação técnica. A essa entidade caberá registrar os contratos de comercialização, conferir se cumprem os regulamentos, trocar informações com os gestores do mercado de capacidade.
Já as entidades gestoras das áreas do mercado de capacidade do sistema nacional deverão ser formadas pelos transportadores e centralizar informações sobre capacidade de transporte e tarifas, além de conciliar os planos de manutenção das instalações integrantes da área. Elas terão ainda a atribuição de fazer o plano de desenvolvimento do sistema, prevendo providências para otimizar e ampliar instalações. O objetivo do plano será atender a demanda por gás natural, a diversificação de suas fontes e a segurança do suprimento para os dez anos seguintes.
Também deverá ser criado um conselho de usuários, formado por produtores, importadores, comercializadores, distribuidores e consumidores livres, com estrutura de governança aprovada pela ANP, para monitorar o desempenho do sistema de transporte. Esse conselho deverá encaminhar à ANP relatório periódico sobre problemas no mercado de transporte de gás.
O texto prevê mecanismos para viabilizar a desconcentração do mercado de gás, do qual a Petrobras atualmente participa com 100% da importação e do processamento e com cerca de 80% da produção. A empresa vem se desfazendo de suas participações nas cadeias de transporte e distribuição após celebrar termo de compromisso com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), responsável por impedir a formação de cartéis e outras práticas que possam prejudicar o mercado.
Assim, os consumidores livres (os que podem escolher de qual empresa comprar, ao contrário das pessoas físicas, presas a uma distribuidora) e as empresas que produzem e importam para consumo próprio (autoprodutores e autoimportadores, respectivamente), cuja demanda não possa ser atendida pela distribuidora estadual, poderão construir instalações e dutos para o seu uso específico, que deverão ser operados pela distribuidora estadual, por meio de contrato.
Em outra frente, a proposta permite que distribuidoras, consumidores livres, produtores, autoprodutores, importadores, autoimportadores e comercializadores constituídos sob as leis brasileiras e com sede e administração no país sejam autorizados pela ANP a importar e exportar e a comercializar internamente o gás natural.
Para desconcentrar o setor, o projeto determina ainda que a ANP use mecanismos como a cessão compulsória de capacidade de transporte e escoamento da produção e processamento; obrigação de venda, em leilão, de parte dos volumes de comercialização detidos por empresas com elevada participação no mercado; e restrição à venda de gás natural entre empresas nas mesmas áreas de produção. Antes de adotar essas medidas, a agência deverá ouvir o Cade.
Visando a evitar interferência de uma empresa sobre a outra, o que, na prática, pode levar à formação de cartéis, o texto proíbe os acionistas que controlam empresas de exploração, desenvolvimento, produção, importação e comercialização de gás natural de acessarem informações sensíveis dos transportadores relacionadas à concorrência.
Essas pessoas também ficam impedidas de indicar membros da diretoria ou do conselho de administração das transportadoras ou das diretorias comercial e de suprimento das distribuidoras de gás canalizado. As empresas terão até três anos para se adequar à nova exigência.
A matéria também garante o uso, mediante contrato, dos terminais e gasodutos que escoarem a produção e das instalações de tratamento ou processamento de gás natural, inclusive o liquefeito. O transportador também terá que permitir a interconexão com outras instalações de transporte. Embora mantenha a preferência de uso do proprietário, a proposta pretende evitar que empresas de um mesmo grupo controlem todo o destino do gás, desde sua extração ou importação até o consumidor final.
Se não houver acordo sobre a remuneração ou a forma de uso dessas instalações, a ANP decidirá sobre a questão. As partes poderão, entretanto, escolher em comum acordo outro meio de resolução de disputa, como as comissões de arbitragem.
Outra novidade do texto é a permissão para a estocagem do produto em jazidas esgotadas de petróleo. A proposta também muda de concessão para autorização a permissão para essa estocagem. A ANP definirá quais formações geológicas poderão ser usadas, também as regras, e cobrará das empresas pelos dados geológicos das áreas com potencial para estocagem. Por sua vez, elas terão que enviar gratuitamente à agência os dados que obtiverem durante o uso dos locais.
O projeto ainda garante o uso dessas instalações de estocagem por outras empresas (comercializadores, por exemplo), cabendo à ANP definir quando a regra passará a valer, levando em conta os investimentos feitos pela companhia proprietária nas instalações. No entanto, o armazenador de gás natural em jazidas de petróleo desativadas não poderá retirar dessas formações geológicas volume de gás natural superior ao originalmente armazenado — o que caracterizaria exploração da jazida —, sob pena de ter a autorização cancelada.
Atualmente, o transporte de gás é concedido à iniciativa privada por 30 anos por meio de licitação pública com base no critério de menor preço para o volume contratado. Já o PL 4.476/2020 determina que o preço máximo será definido pela ANP apenas depois de consulta pública, assim como os critérios de reajuste e de revisão das tarifas. Estão previstas revisões periódicas e também poderão ser feitas revisões extraordinárias, a critério da agência.
O volume contratado para o transporte será semelhante ao existente atualmente, em que a empresa se responsabiliza pelo transporte de certa capacidade de entrada de gás no gasoduto ou de saída dele. A diferença é que a ANP não precisará mais fazer uma chamada pública para definir esse volume.
Os contratos vigentes de transporte de gás deverão se adequar ao novo sistema em até cinco anos, contados da publicação da futura lei, sendo permitida a compensação de eventuais prejuízos por meio de aumento da tarifa. Os regimes atuais de consumo e de exploração de gasodutos para suprir a necessidade dos produtores de fertilizantes e das refinarias continuarão os mesmos.
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